Um “crime” para atender ao social
Não queria tratar desse assunto nessa coluna, por ser um assunto batido demais nos últimos dias pela grande mídia nacional. Isso torna o debate chato e repetitivo, além de ser um exagero de notícia, quer dizer, de uma “não-notícia”, já que todos sabem tudo sobre o fato, assim, para que repetir? Termina (re)produzindo apenas “sentimentalismos”. Nossa entrada no tema será de outro tipo. Sim, estou falando do crime dos “Nardoni”. Todavia, nossa intenção aqui não é saber quem matou ou deixou de matar, se foi o pai, a madrasta ou um “terceiro elemento”. Para nossa reflexão, isso não interessa, não vem ao caso. O que vale aqui é o próprio crime. Nem queremos saber das intenções por trás desse ato, digo das intencionalidades subjacentes, dos desejos e vontades envolvidos (das causas individuais). Isso também não importa.
Queremos ressaltar, trazendo em cena pela segunda vez nesse espaço, o sociólogo francês clássico da sociologia, Émile Durkheim (1858-1917), o papel desempenhado por esse tipo de crime no fortalecimento da “moral social”. Lembrando que para este autor, a moral sempre é social, no sentido de ter sido e ser produzida socialmente, fruto de coletividades, que pode vir se alterando com o tempo. A própria censura posta sobre um acontecimento numa época histórica determinada pode deixar de ser em outra. Quer dizer, no pensamento durkheimiano, o que era reprimido ou tomado como algo “desviante”, como “crime”, em um período, pode deixar de sê-lo em outro. Isso tanto no âmbito da objetividade das leis, do direito, das proibições e sanções, quanto no âmbito difuso da moral “em si”, da tradição, dos costumes.
Portanto, não se pode deixar de lado essa dimensão histórica e processual da moral. Não sendo, pois, algo estático/fixo por toda vida, como alguns acreditam e defendem ostensivamente. Mas, nesse caso, é algo dos mais repulsivos e odiados socialmente, escrito como crime nas leis do direito, no direito penal. No caso de um crime contra uma criança, ainda mais num contexto aparentemente “banal”, representa algo por demais ostensivo e dado a punições que, quanto mais severas, melhor para a satisfação do conjunto da sociedade.
Pensemos por um momento como a “comoção social”, apesar de ter sido tão estimulada pela mídia, funcionou como a própria manifestação de um pensamento coletivo em processo. Nos termos durkheimianos, podemos dizer que aquilo foi a manifestação da “consciência coletiva” ou da sociedade “em nós”. As pessoas na porta do tribunal nos dias do julgamento também cumpriram esse papel. Curioso como muitos vibraram, a cada dia, com o andamento do caso e depois, no dia da condenação, a exaltação se generalizou. O social, enquanto coletividade, tem um poder assombroso. Basta ver a reação que os “populares” tiveram diante de um indivíduo que queria defender sua opinião, afirmando que o casal poderia ser inocente: imediatamente, foi contido pela coletividade.
Esse crime cumpre uma “função social”, que tem uma “conseqüência” inscrita, esperada: a pena. Na verdade, o crime só é tido como um crime por ferir a consciência coletiva, só por isso. Cabe a resposta ao crime, a punição/castigo, servir como um “remédio social” para sanar essa “ofensa” ou “fissura” na moral da sociedade. Esse é o próprio “efeito” do crime: fortalecer a moral através da pena. É como se aquele tipo de crime, horrendo, tivesse ferido/ofendido algo que de mais “sagrado” existe no mundo social, a própria coletividade.
Para Durkheim, o coletivo é sempre mais importante que os segmentos individuais, infinitamente superior à soma de suas partes constitutivas, mesmo porque, forma algo diferente, forma algo peculiar, “sui generis”. É claro que tal episódio ganhou tanta comoção por ter sido um crime cometido contra uma criança pequena (indefesa), “branca”, de família de classe média ou média alta de São Paulo. É conhecida a existência de crimes similares no Brasil, mas que não ganham, sequer, uma chamada no jornal regional ou que rapidamente são esquecidos por causa de algum outro assunto do momento. Pelo simples fato de terem ocorrido com pessoas pobres e em lugares pouco relevantes economicamente.
Portanto, no pensamento durkheimiano, a compreensão e explicação dos fatos têm sempre que serem buscados no social, já que são eminentemente de ordem social, são fatos “sociais”. Com o crime não poderia ser diferente. Também é sabido que, para o autor, tal tipo de crime (homicídio) dificilmente poderia abalar a estrutura social como pode ocorrer com questões econômicas – apesar de ser visto, no direito penal, como o “maior dos crimes”. Contudo, a esfera moral perpassa toda a sociedade e é vivenciada por todos os seus membros de uma forma ou de outra, todos estão embebidos de elementos de moral, seja decorrente da coletividade em si, parte da consciência coletiva, ou travestida via grupos sociais, dos quais fazemos parte. Tudo é fruto de nossa socialização e convivência social. Por isso, devemos sempre pôr “dois pesos e duas medidas” diante dos fatos postos e vivenciados na sociedade para se evitar paixões excessivas ou perspectivas individualizadas ao extremo, o social deve ser compreendido pelo social, diria Durkheim.
6 Comentários:
Antes mesmo do julgamento propriamente dito, os Nardoni já eram amplamente culpados pela população em geral. A falta de provas e álibes para a defesa acho que foi determinante para o descrédito das versões do casal e o aumento da fúria da sociedade. Porém devemos tomar cuidado, pois em muitos julgamentos os réus são inocentes e se a sociedade ficar sempre a espera do que a mídia diz, estaremos possivelmente cometendo um erro maior que é julgar os outros sem ter provas cabais para tal.
30 de março de 2010 às 09:08Caro Bruno,
30 de março de 2010 às 11:19Muito oportuna sua utilização de uma notícia “fresca” para divulgar as utilidades do ofício sociológico e dar o veredicto durkheimiano para o caso Nardoni.Gostaria apenas de acrescentar duas críticas, que talvez possam constar na tua próxima postagem.
A primeira diz respeito a uma tristeza que o pensador francês teria ao acompanhar os ocorridos. Não me refiro à dor da menina, que comove a todo ser humano com um mínimo de compaixão e senso de justiça. O fato, não “social” no sentido estrito do termo, que acredito desagradaria sociologicamente Durkheim, é a utilização da pena ou castigo não para reforçar uma moral, que como você nos lembrou corretamente é social. O linchamento moral, social, midiático e quase físico do casal acusado, antes de um julgamento imparcial, como garante a justiça e que é constantemente desrespeitado pela imprensa, não interessada em outra coisa senão vender noticia, não contribui para que os indivíduos sofram maior coerção para respeitarem a lei que proíbe o homicídio. Na verdade, endossa uma consciência coletiva que apóia a suspensão do estado de direito, que garante a preservação das condições de imparcialidade num julgamento, em nome do lucro pela encenação da revanche e do ódio, que todos nós naturalmente sentimos quando um caso destes se apresenta. A justiça é cega; não pela paixão, mas, como você muito bem assinalou ao lembrar crianças menos favorecidas pelo respeito social, por não julgar pelas aparências nem superficialidades. Acho que, durkheimianamente, deveríamos lamentar um crime bárbaro cometido contra o casal Nardoni, pois sendo monstros psicopatas ou não, possuem o direito a um julgamento isento de euforia de final de Big Brother.
A segunda critica, que talvez você, como leitor arguto de Marx, poderia vir na pergunta de sobre o porquê de a imprensa estar “acima da lei”. Acho aqui seria oportunidade para uma crítica ao pensamento de Durkheim, que sempre deveu explicações a respeito de uma ausência da consideração do conflito social na produção da dita “consciência coletiva”, deixando de considerar o embate de força antagônicas na produção do que é considerado moralmente correto e o que é crime. No caso Nardoni, o linchamento aparece como executado por uma “opinião pública”, mas que, na minha modesta opinião, na verdade obedece a uma pequena parte da sociedade acostumada aos abusos de poder. Não foi só a “sede de justiça” de muitos que se movimentou no caso; mas a cobiça de uns poucos também.
Espero não ter antecipado uma possível segunda parte deste brilhante artigo que você postou.
Um abraço do teu amigo de sociologia e Rio de Janeiro,
Eduardo Carrascosa
Caro Bruno, muito oportuno e interessante o seu artigo. De fato, embora coneheça apenas razoavelmente a obra de Durkheim, creio que suas reflexões sintonizam-se perfeitamente com o fato ora em questão. Concordo plenamente quando você diz que esse fato, relevante por sí só, só atinge a relevância social alcançada, primeiro, por uma exposição midiática muito intensa, e segundo, e talvez por isso a repercussão midiática, o fato ter ocorrido com uma garota branca, de classe média/alta, da cidade de São Paulo. É inegável que existem milhares de "isabellas nardonis" espalhadas pelo país, tendo suas vidas ceifadas cotidianemente, sem que alcance a notoriedade, e sequer a justiça. No entanto, eu gostaria de chamar atenção para o fato, ocorrido nas entranhas da classe média, não surtirem o mesmo efeito social na dita classe média. Não estou dizendo que esta não se comova, no entanto, a sua maneira de se exprimir é bem mais discreta. Estive, não por muito tempo, no fórum onde aconteceu o julgamento, e se fizermos um raio-x das pessoas que ficaram de quarentena em frente ao fórum, as pessoas que viajaram de cidades longiquas para clamar por justiça, a grande maioria não é da classe média, mas sim de pobres. O porquê disso, não sei, se a sociologia puder me explicar, agradeço. Um abraço!!!
30 de março de 2010 às 17:14J. Dannieslei
Gibran,
30 de março de 2010 às 19:59Quando me referi no título do texto que o crime atende ao social era para frisar que é o social que comanda o processo, a coletividade, não necessariamente a mídia. Existem muito mais coisas na sociedade para além da opinião midiática, pode-se formar opiniões em diversos contextos, por exemplo, na família, no trabalho, no lazer, na escola, na rua etc. Na verdade, no sentido de Durkheim, era apenas para dizer que todos nós temos coisas do SOCIAL, da sociedade, ela está em nós. Vive em nossa mente, por isso, que a punição a este crime é para atender a essa coletividade que tem em nós, restaurar a força da própria “consciência coletiva” (sua moral).
Pessoal, tentei, no texto, esboçar as ideias de Durkheim, não necessariamente são as minhas. Concordo com muita coisa, mas discordo de outras também.
Caro Eduardo, concordo com vc em quase tudo e digo que não antecipou nada. Não pensei em continuar com o tema em outro texto. Mas, já agradeço a atenção dispensada e parabéns pelo debate sociológico realizado. Isso é tão raro hoje em dia, né mesmo?
Então, vamos aos teus comentários. De fato, na mesma linha posta por Gibran, ocorreu um julgamento social antecipado dos réus, mas acho que cabe aos procedimentos jurídicos analisar isso. Sem dúvida, parecia uma “final de Big Brother”. E, certamente, essa “consciência coletiva” durkheimiana que seria supostamente “neutra”, “isenta”, exceto por sempre visar garantir a própria unidade e continuidade da sociedade, sua coesão e integração social, representa, pois, interesses de classes, de grupos. Mas, não irei aprofundar isso.
Porém, Eduardo, a sede por “vingança” perpassa nossas consciências, como diria Durkheim, e encontra no Estado (nas leis do direito penal) formas organizadas e menos severas/perversas de se realizar, mas é preciso que ocorra. A pena é parte crucial do crime. Sem ela o crime não cumpre sua “função social”, seu efeito. Durkheim acreditava nisso piamente, pois seu sistema está baseado no par causa e efeito, sendo que ele explica as causas das coisas pela função que exerce na integração da sociedade. Logo, tudo ganha uma funcionalidade, inclusive, nossa existência. É muito cômodo pensar assim, evita pensar, como você aponta, no elemento do conflito como sendo constitutivo das sociedades modernas, sobretudo, no conflito de classes baseado numa sociedade desigual. Isso permite pensar que a própria noção de “consciência coletiva”, se ela de fato vigorar, tem que estar inserida nos termos do conflito também. Logo, em Durheim, ela não pode ficar refém dessa ou daquela classe dominante, seria algo acima das classes. Contudo, em Marx, a pegada é outra. Essa tal consciência coletiva estaria mais próxima de outros termos como o de ideologia, consciência de classe, interesses etc.
Dannieslei, valeu pelas reflexões postas. Veja bem, não saberia dizer por que aparentemente foram os mais pobres da sociedade que mais clamaram por justiça. Primeiro, teria que confirmar isso, fazer uma pesquisa para saber qual a condição daquelas pessoas que estavam lá na porta do tribunal. Depois, perguntar para elas quais eram suas motivações. Enfim, seria necessário uma pesquisa localizada para pensar no assunto. Todavia, partindo do pressuposto de que eram pessoas mais pobres, pode-se dizer que tem haver com admiração por pessoas “bem sucedidas” de outras classes ou pela pouca instrução (conhecimento formal) que possuem, o que poderia contribuir para que não refletissem muito sobre o assunto e se deixassem levar mais facilmente pela “onda”, pelo “movimento midiático”. Não que nenhum de nós não possa ser levado pela onda, pode sim, mas têm grupos que parecem ser mais suscetíveis. E, claro, isso não tem haver com ser inteligente ou não ser inteligente, estou tratando de outro sentido, do conhecimento das coisas em geral, por exemplo, das leis, das regras formais de conduta etc. E os profissionais midiáticos sabem disso, não por acaso se valem de propagandas direcionadas etc.
No mais, grato a todos pelas indagações e reflexões.
Abraço.
Só a título de curiosidade, ao acompanhar o desenrolar desse caso, várias foram as vezes a que os jornalistas se referiram à falta de expresões emocionais do casal. Volta e meia, falava-se da "frieza" dos nardoni, da sua incapacidade de se comover, seja no julgamento, seja no próprio dia do acontecido. Esse argumento, inclusive, foi amplamente utilizado pelo promotor, incoformado com o fato de Alexandre nao ter se jogado pela janela ao ver a filha estendida no jardim. Essa particularidade me trouxe à lembrança o romance "O Estrangeiro" de Albert Camus. O personagem principal do romance, Mersault, comete um assassinato, na minha visão em legitima defesa, e vai a julgamento. Antes do ocorrido, sua mãe havia falecido no asilo onde ele a havia deixado, fato que para espanto de todos, o deixara absolutamente indiferente. O fato é que durante o julgamento, pesa para a sua condenação muito mais o fato da sua frieza, da sua indiferença, da sua falta de comoção ante os acontecimentos, do que o crime propriamente dito. Espero que conheçam o livro já que fiz apenas parcos comentários, mas de fato, lembrei-me muito dessa obra. Se não leram ainda, fica a recomendação.
31 de março de 2010 às 17:06Abraços
J. Dannieslei
Dannieslei, valeu pela recomendação.
1 de abril de 2010 às 09:01Essa questão da "frieza", nos termos de Durkheim, pode ser interpretada como um estado de "anomia social", pois era esperado que eles ficassem comovidos e tal, daí, visto que não ficaram não possuem os elementos coletivos, sociais, da moral, dentro deles, o que é um problema. São, portanto, seres em anomia, desviantes...
saudações.
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