sábado, 6 de fevereiro de 2010

Nossos bichos

haiti

Não sei se coaduna com os objetivos desse espaço, mas desde já quero deixar claro que não são grandes as minhas pretensões. Isso não significa que eu seja uma pessoa humilde, modesta, pacata, ou qualquer coisa do gênero, absolutamente. Estou apenas querendo poupar, agora, o trabalho de ter que pedir perdões posteriores. Não gosto dos pedidos de perdão. Acho-os desnecessários, supérfluos, embora saiba de antemão que as falhas são e serão sempre inevitáveis.

Se tiver alguma pretensão aqui, ela se resume à busca de estabelecer uma relação de confiança. Não entendam esse meu desejo como uma súplica para que creiam cegamente, interiorizem sem se indagar o porquê, o que digo como a manifestação da verdade. Queria apenas que acreditassem que se digo algo, o faço de maneira honesta.

Ontem, refletindo sobre o que escrever nesse encontro inaugural, buscando uma inspiração que, teimosa, não vinha, comecei a remexer em leituras antigas, escondidas no fundo da gaveta e foi então que me deparei com Drummond. Acho Drummond um poeta estranho, e devo admitir que, por mais que me esforce, nunca entendi o que ele pretendeu com os versos “Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo”. Tentava eu estabelecer um nexo, uma relação causal, entre mãos e sentimento, ainda mais, do mundo. Falhei na compreensão, embora de maneira paradoxal fosse exatamente o que sentia. Com duas mãos inertes diante da profusão de sentimentos cotidianos.

Na TV, começava o jornal. Engraçado, de uns tempos pra cá, os jornais não conseguem me surpreender; cada vez mais tenho a impressão de que as notícias se repetem, que nada de novo acontece. Passei os olhos na tela da Tv, sem muita curiosidade, e deparei-me, como nos dias anteriores, com o Haiti. Joguei a poesia de Drummond para o lado, e pensei que poderia escrever algo sobre o Haiti, mas, logo em seguida, cheguei à conclusão de que não queria falar do Haiti. Afigurou-se para mim naquele momento que era mais fácil não ver, não ouvir, não conhecer, para evitar o risco de sentir. De sentir o Haiti. Resgatei a poesia de Drummond, que parecia olhar para mim do lugar que a havia lançado, e pela primeira vez aqueles estranhos versos começaram a fazer algum sentido. Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo.

Tragédias como essa do Haiti, ou como as enchentes em São Paulo, ou a guerra do tráfico no Rio de Janeiro, ou outras tantas que não alcançam a notoriedade, tem o costume de levar para os holofotes especialistas em sociologia, filosofia, meteorologia, ou sei lá o quê. Não desprezo, pelo contrário, enalteço as descobertas fantásticas da racionalidade humana. Mas não era bem um tratado de sociologia ou uma análise aprofundada sobre o efeito estufa que eu precisava naquele momento para acalentar meu coração. Eu queria um pouco mais de sentimento. Queria que nem que fosse por um instante, o horário nobre da TV se rendesse a Vinicius de Moraes, angustiado ao ouvir “os passos na noite que se perdem sem história”, ou ao sentimento do mundo de Drummond, ou quem sabe até, a Manuel Bandeira. Queria que a luz abaixasse e que a voz grave do ancora pudesse dizer:

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.

Queria um pouco mais de sentimento, para talvez tornar a miséria humana, um pouco mais humana. Não queria vê-la apenas como mais um capítulo, que terminha hoje e recomeça amanhã, no mesmo horário, no mesmo canal, como se durante todo esse intervalo de tempo aquelas cenas deixassem de existir e aquelas pessoas deixassem de existir.

Os bichos haitianos, os bichos brasileiros e os africanos e todos os outros bichos estão sempre por aí, em cada esquina, do Haiti ou daqui, mas nos interessa tão pouco. Fechei o livro de Drummond que segurava em minhas mãos, desliguei a TV, já era tarde, e fui dormir. Deitei-me, e o sentimento que eu tanto esperava, ou já havia se dissipado, ou talvez nem tivesse chegado. Pensava apenas que dali a poucas horas começaria mais um dia, e que é tão mais fácil conviver com a covardia resignada, do que se permitir a sentir, os bichos ou o Haiti. Confesso que tive vontade de pedir perdão, mas não sabia a quem fazê-lo. Ainda bem que foi só um rompante, teria me arrependido, não gosto dos pedidos de perdão.

J. Dannieslei

 

Referencias aos poemas:

“O Haver”, Vinicius de Moraes

“Sentimento do Mundo”, Carlos Drummond de Andrade

“O Bicho”, Manuel Bandeira

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3 Comentários:

Henrique Oliveira disse...

Cara,
sempre gostei do tom de humanidade dos seus textos. Estas palavras são daquelas que fazem a gente repensar muita coisa...

Nós estamos acostumados a simplesmente esquecer o que acontece na nossa cara. A não nos incomodarmos...
Talvez, falte um pouco mais de revolta na gente. Um pouco mais de inconformismo com tudo isso.

Abraço e parabéns pelo texto!

6 de fevereiro de 2010 às 13:39
Paulo Athayde disse...

Eu acho que fez um diagnóstico perfeito do que poderíamos chamar: a perda de nossa capacidade de indignação.
A forma espetaculosa como os temas mais sérios são tratados pela mídia – notadamente a TV – tem muito à ver com isso. A exposição desrespeitosa e insensível do sofrimento e da dor, pasteuriza a sensibilidade e deixa só o espetáculo e a emoção inconsequênte.
O retorno... é um processo que começa com o resgate do nosso olhar... por que tudo está, efetivamente, no olhar.

Um abraço

7 de fevereiro de 2010 às 12:17
Luma Rosa disse...

Muito bem conseguido este texto. Os jornais tentam humanizar e colocam invariavelmente alguém derrubando lágrimas, para sensibilizar o telespectador, mas essa intenção é apenas para prender a audiência. Infelizmente quem poderia ajudar, efetivamente a população, pouco se importa! Eu diria que os iguais se entendem! Assim, quem é doente se compadece da doença alheia, quem é pobre da pobreza do outro e assim por diante. Dificilmente alguém estando em uma situação previlegiada pára para olhar o sofrimento alheio. Estou generalizando, tá?
De certa forma, este texto está em sincronia com o último post do meu blogue, mas de longe passa pela erudição deste post.

7 de fevereiro de 2010 às 18:19

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