sábado, 6 de março de 2010

Sobre cotas e outras coisas

manifesto cotas

Já se passaram alguns anos, mas ainda me lembro o quão estressado fiquei quando fiz vestibular. Dormia pouco, quase nada. Sair, namorar, encontrar os amigos, nem pensar. Vivia para os estudos, mas de certa forma valeu a pena. Eu cheguei lá.

Estudei minha vida inteira em escola pública, portanto, sou testemunha do quão falho é o sistema. Embora a minha escola tenha feito comemorações, oba- oba, festa com presença de autoridades quando da nossa aprovação, minha e de mais umas dez pessoas no máximo, o que é nada para uma escola de mais de três mil alunos, tenho a consciência nada modesta, confesso, de que a minha vitória deveu-se muito mais a méritos meus. No entanto, se fosse hoje, coitado de mim. Teria que me esforçar o dobro do que me esforcei, o que, cá pra nós, seria desumano. Tenho um problema: sou branco. Tive azar. Meu pai é negro, meu avô negro também, meu bisavô, vixe, era um negão, mas eu, pobre de mim, não sei se por birra de Deus ou da miscigenação, nasci branco.

Embora já tenha feito um preâmbulo do que vou tratar nesse artigo, e de certa forma adiantado a minha posição sobre, gostaria, antes, de tentar contribuir no sentido de desfazer equívocos quanto à base legal das políticas de discriminação positiva. Mesmo não sendo especialista em Direito, espero que me permitam a pretensão. A Constituição Federal de 1988 declara expressamente no caput do seu Art, 5º que “todos são iguais perante a lei, sem distinções de qualquer natureza...”. O que eu tenho percebido nas discussões que venho travando sobre o tema é que há, mesmo nos meios intelectuais, compreensões simplistas e rasteiras a respeito do supracitado princípio da isonomia. A igualdade aqui preconizada, e essa já é uma questão pacífica no Supremo Tribunal Federal, há que ser compreendida de forma a se tratar os iguais de maneira igual e os desiguais de maneira desigual, na medida das suas desigualdades. Não fosse assim, a própria Constituição não estabeleceria discriminações, como por exemplo, o tempo de aposentadoria diferenciado para homens e mulheres, a proteção do mercado de trabalho da mulher, a garantia de um percentual de vagas em concursos públicos para deficientes, etc. Portanto, as políticas de discriminação positiva, ou ações afirmativas, como preferirem, extraem sua base legal do próprio texto constitucional, isso não questiono.

O ponto que pra mim não é pacifico é estabelecer a questão raça, cor, como fator de desigualdade. É claro que o nosso país é preconceituoso, embora seja politicamente incorreto admitir, o fato é que é. Mas daí a positivar o preconceito, transformá-lo em lei, em políticas públicas, acho que é dar um passo perigoso. A África do Sul e os Estados Unidos fizeram isso, e as conseqüências não foram as mais alentadoras.

Sem se falar que a discussão em torno do assunto tem se dado de maneira irresponsável. Acredito que esse debate tem que sair das casas legislativas e tomar as ruas, permearem o cotidiano de cada um de nós, para chegarmos a uma conclusão satisfatória. O que tenho percebido com uma dose áspera de pesar é que as políticas de cotas no Brasil, assim como praticamente todo assunto importante, têm servido muito mais de palanque eleitoreiro para políticos mal intencionados que as usam para “ficar bem” diante de determinados grupos sociais. Basta ver, por exemplo, o alarde feito no governo Fernando Henrique Cardoso quando da indicação da primeira ministra mulher, Hellen Gracie, para o STF. Não menos alarde fez o Governo Lula, quando indicou o Ministro Joaquim Barbosa, primeiro negro a compor o Supremo. A impressão que ficou é que os parâmetros utilizados foram de gênero e raça e não o de notório saber jurídico e reputação ilibada como prevê a constituição.

ellen-barbosa Joaquim Barbosa e Ellen Gracie: indicação com critérios de gênero e raça? 

Acho que esse é um assunto sério e que deve ser discutido de maneira mais responsável. Repito, sou favorável à política de cotas, desde que sociais, até mesmo porque não podemos desprezar as peculiaridades do nosso país. Como definir o que é ser negro num país como o nosso? Os defensores da política de cotas acham que esse é um argumento rasteiro e supérfluo, no entanto, ainda não apresentaram, se é que isso é possível, um parâmetro minimamente aceitável. Acho que temos que nos preocupar, antes, em levar a educação mais a sério, e isso independe de questões raciais. Por exemplo, no Brasil há uma inversão que seria irônica, se não fosse trágica. A classe média, e aqui não importa se negros ou brancos, cursa todo o ensino fundamental e médio nas escolas particulares e vai fazer faculdade nas federais. Enquanto o restante da população, também não importa se negros ou brancos, estuda o ensino fundamental e médio sofríveis na rede pública e depois tem que pagar pra fazer um curso superior.

Portanto, quero deixar claro que não sou contra a política de cotas, pelo contrário, sou um entusiasta das cotas, mas, desde que sejam cotas sociais. Por outro lado, abomino as cotas raciais. Reconheço a injustiça histórica a que o povo negro sempre foi submetido no nosso país, mas acho que isso não justifica o cometimento de uma nova injustiça. Imaginem vocês, um professor, numa sala de aula com dois alunos que moram no mesmo bairro, os pais trabalham no mesmo emprego, ganham o mesmo salário, ou seja, tem existências idênticas. Aí a professora fala pra um “você tem cinqüenta por cento de chance a mais de cursar uma universidade do que ele”. E outro pergunta, “mas por quê?”. Ao que ela responde, “porque ele é negro e você é branco”. Com as devidas vênias dos que discordam, acho que o caminho não é esse, mas estou aberto para que me provem o contrário.

J. Dannieslei

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1 Comentário:

gibranduraes disse...

Caro J. Dannieslei, também sempre achei essa política de cotas raciais um absurdo. Ainda mais que até agora quem diz a qual cor/raça pertence é a própria pessoa que vai realizar o certame. Também sou a favor de cotas sociais, para que tentando favorecer os negros não se cometa a discriminação racial com os brancos/indios/orientais.
Abraços.

6 de março de 2010 às 11:30

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